QUEREMOS SABER
uma breve
História
da morte
no ocidente
Por: franciane nolasco
Quando nos enlutamos, pensamos em nossa própria morte, na morte de um ente querido ou em acontecimentos ao redor do planeta que envolvem esta temática não estamos refletindo necessariamente sobre como se dá nossa relação com o morrer. Por vezes somos lançados a essas experiências em nosso cotidiano e aceitamos o convite de olhar para elas ou não, de nos aprofundarmos nelas ou não. Este texto em particular trata-se de um convite explícito a observarmos juntos alguns significados sobre a morte e o morrer que foram compartilhados ao longo da história do Ocidente. Será que ao observarmos estes significados, conseguimos identificar semelhanças e diferenças com o modo como cada um de nós se relaciona com a temática, bem como as religiões e cultura em que estamos inseridos e nos inserimos estão a compreendendo? Fica aqui a possibilidade desse questionamento.
Para falarmos do assunto, irei lançar mão do estudo de Marcos Mattedi e Ana Paula Pereira, que nos trará um pouco desses diferentes contextos de significados. Segundo os autores, o processo de convivência com a morte por parte das diferentes sociedades, comunidades, culturas envolveu e demandou diferentes dispositivos de suporte sociopsicológico para convivência e lida com este fenômeno. Também o estudo de Franklin Santana, nos mostra que desde os tempos da consciência humana mais primitiva já é possível verificar a existência da preocupação com os mortos. Na época Pré-histórica, segundo os autores, haveriam indícios de rituais vividos juntos aos corpos dos mortos, pela presença de elementos como pedras e alimentos, assim como a possibilidade de significação da morte como processo de renascimento, uma vez que é possível encontrar corpos que foram enterrados em posição fetal e pintados de vermelho, rementendo-nos a uma conexão entre o final e o início da vida. Além disso, eles salientam que a mitologia sempre foi para os povos primitivos e antigos e, ainda hoje o é, fonte de relato e experiência dos mistérios da origem da morte no mundo.
Estas mesmas conexões mitológicas podem ser verificadas, mais tarde, segundo Franklin Santana, na forma como os egípcios mantinham seus ritos na sua relação cotidiana com os falecidos, no próprio significado que a morte tinha para eles e também na forma como pensavam e organizavam a vida a partir disso. Pela primeira vez, ao longo da história, foi possível perceber uma preocupação com o tipo de vida que se cultivava e suas consequências no julgamento final durante a morte, como verifica-se na história do Mito de Osíris. Pela primeira vez, segundo o autor, a morte aparece significada de um caráter de penalidade juntamente ao temor que lhe ronda diante da possibilidade do castigo.
Anos mais tarde, os estudos relatam que, para os gregos, seria possível perceber a mitologia também associada à criação de um mundo após a morte. Para os filósofos gregos, todavia, o próprio exercício da filosofia era uma verdadeira arte de morrer o tempo inteiro. Um dos elementos essenciais de sua forma de compreensão da morte era a de que havia, durante ela, a separação da alma (e espírito) do corpo, apresentando uma forma marcadamente dualista de compreensão deste fenômeno. (Ver Franklin Santana).
Segundo Franklin, ainda na Idade Antiga, a história de Adão e Eva e da transgressão no paraíso remonta à origem da presença da morte na humanidade. Sendo que tal associação da morte a esta transgressão original faz parte até os dias atuais de algumas religiões, como o Judaísmo e o Cristianismo. De um modo geral, durante o início da Idade Média, havia uma concepção geral de ligação entre o natural e a Lei Divina. Nesta época, segundo o historiador francês Ariès (citado no estudo indicado), a morte acontecia para as pessoas de uma forma previsível na maior parte dos casos, em que as pessoas sabiam que estavam adoecidas, sabiam quando morreriam, havia tempo e espaço para chamar os entes queridos para acompanhar o processo do morrer, bem como este acontecia em um ambiente familiar como o próprio leito do moribundo. À este modo de relação com a morte, o historiador chamou de “Morte Domada", uma vez que posteriormente na história da humanidade deu-se o conhecimento da morte selvagem em contraste à relação com a morte deste período. Marcos e Ana Paula, acrescentam a isto que neste período de “Morte Domada”, esta era um fenômeno coletivo, em que havia uma espécie de solenidade em que marcava-se uma solidariedade da comunidade com a pessoa que estava a morrer. Além disso, o processamento do corpo após a morte também estava aos cuidados desses indivíduos, fato este que também contribui para noção de “Morte Domada”.
Após alguns anos em que houve ascensão da Igreja a imagem coletiva da morte estava muito relacionada à figura da “Morte Ceifadora”, principalmente pelo contexto das guerras e da peste, onde houveram mortes em massa na Europa Ocidental. (Ver Franklin Santana). Além disso, no século XV, a morte andava ao lado da tortura nos processos da Inquisição, tendo sido muito associada à noção de castigo durante este período. A partir do século XV e XVI, e, mais estabelecidamente no século XVIII, quando o Iluminismo possibilita e reivindica novas formas de conhecimento, surge a possibilidade da ciência abordar os assuntos da morte. (Ver Franklin Santana).
Segundo Franklin, nesta época ela passa a ser um evento manipulado e moldado pelo ser humano, iniciando-se o processo de “medicalização da morte”, assim nomeado pelo historiador Airès (citado no estudo indicado). As novas tecnologias médicas dão início a um processo de distanciamento do ato de morrer do cotidiano, morte própria do moribundo e seu tempo, do seu ambiente familiar, levando a morte para os hospitais, sob a tutela dos conhecimentos e protocolos médicos, uma morte que se torna distante, impessoal e cada vez mais destituída de sentido. (Ver Franklin Santana). Além disso, Marcos e Ana Paula acrescentam que chama-se “Morte Invertida” este fenômeno da nova forma de morrer que surge principalmente a partir do século XX em que em algumas zonas industrializadas e urbanizadas, os indivíduos passam a ser retirados de seu cotidiano para morrer, sendo levados à organizações especializadas em tratamentos de doenças para impedimento da morte e prolongamento da vida. A então mencionada, “Morte Invertida” é a morte que ameaça o bem estar social, tornando-se então, a “morte que se esconde”.
Aqui inicia-se um processo de Tabu da Morte, em que parece haver um acordo coletivo de que o morrer seja silencioso tanto pelo moribundo que em grande parte dos casos morre sedado e inconsciente sob tutela do médico, muitas vezes sozinho e, quando acompanhado, há o “acordo coletivo” que parece demandar que o choro seja em silêncio e que todo o processo não perturbe a vida cotidiana, passando quase que despercebido por esta. Aqui, segundo o historiador (citado no estudo indicado), estaria o lugar da morte selvagem, em que sua medicalização é realizada pela medicina e facilitada pela cumplicidade dos familiares. O morrer se torna feio e sujo em contraste à assepsia hospitalar e a morte, portanto, é feia e deve ser escondida, alimentando os processos de sua transformação em Tabu. Segundo Marcos e Ana Paula, é possível descrever que a lida com a morte na sociedade contemporânea, lança mão de recursos sociotécnicos não apenas da medicina, mas também pela participação das agências funerárias no processo. Segundo os autores, estes processos sociotécnicos não acarretam apenas em modo de lida com a morte, mas também em sentidos de vida em que há uma responsabilidade individual de lida de cada pessoa com a saúde do corpo, em que a morte apresenta-se como falha técnica e o acidente como uma espécie de punição por uma vida desregrada.
Além do processo de medicalização da morte, segundo Franklin, também é possível perceber no mundo moderno o movimento de outras disciplinas além da religião e da ciência médica lançando-se sobre o fenômeno da morte, como é o caso da psicologia e também da filosofia, como por exemplo, podemos encontrar a teoria Psicanalítica com a noção de pulsão de morte e pulsão de vida, na Filosofia Positivista a noção estritamente biológica da morte, em Nietzsche juntamente à noção de relativização e no Existencialismo em conjunto à noção de angústia e sentido de vida.
E então, percebeu alguma correlação ou distanciamento com o modo como você se relaciona com a morte e o morrer e como sua religião e cultura também o faz? Como é pra você entrar em contato com esta história de significados? Comenta aqui pra gente.
Estudos citados:
SANTOS, F. S. Perspectivas histórico-culturais da morte. In: A arte de morrer: visões plurais. 2. ed. São Paulo: Editora Comenius, 2009. Disponível em: http://www.pampedia.com.br/abpe/Artigos%20site/ABPE_siteArtigos%20perspectivas%20morte.pdf. Acesso em: 10 fev. 2022.
MATTEDI, M. A.; PEREIRA, A. P. Vivendo com a morte: o processamento do morrer na sociedade moderna. Caderno CRH, Salvador, v. 20, n. 50, p. 319-330, maio/agosto, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ccrh/a/6dwBVkwTPWVFdZK3W8ZH5vJ/abstract/?lang=pt. Acesso em: 10 fev. 2022.