QUEREMOS SABER
Ciclo Psicologia e Espiritualidades
Texto I:
Religião e Psicologia: mesmo locus de atuação?
Dissidências e ressonâncias entre as racionalidades de ambos os campos.
Por: franciane nolasco
Como apresentamos anteriormente, no texto introdutório ao nosso ciclo “Espiritualidade e Psicologia”, é possível identificar no imaginário da população a noção de que a Psicologia e a Religião compartilham um mesmo local de atuação. A saber, um lugar de prestar serviço ao homem ouvindo suas demandas e buscando auxiliá-lo em sua busca por um certo caminho ou processo. Para explicitarmos um pouco mais este “locus de atuação” vou lançar mão dos estudos de Luiz Berni, psicólogo que possui uma trajetória sólida no estudo da temática.
Segundo Luiz Berni, a religião e a psicologia compartilham um locus de atuação, no entanto, possuem campos de fundamentação de sua prática muito distintos. As religiões comumente se utilizam de práticas para conduzir a processos de “Terapia da Alma”, em que se busca um favorecimento e condução do indivíduo a uma cura relativa a sua saúde psicológica como um todo. Esta condução, no entanto, dentro da atuação religiosa, sempre se pauta nos preceitos da religião, podendo buscar por meio desses preceitos uma atuação que encaminha no indivíduo que sofre um certo movimento de cura. Este encaminhar é realizado com base na aplicação dos elementos da doutrina às necessidades do indivíduo.
Também é desta prática do aconselhamento o conceito de “empatia” ou “simpatia”. Ele corresponde a uma escuta que busca uma imersão no processo emocional vivenciado pelo outro que poderia promover uma compreensão dessa vivência e a possibilidade de guiar o outro para a saída do processo de sofrimento e encontro com a cura. Tal saída, embora entre em contato com o emocional do indivíduo que sofre, é guiada também pelos pressupostos religiosos do que seja a cura para um determinado tipo de sofrimento. Consiste em uma capacidade do guia religioso o processo de intuir o outro e guiá-lo a um certo agir de uma determinada maneira em conformidade com os fundamentos religiosos. Com isso, compreendemos do que se trata a intervenção na terapia religiosa.
Em contrapartida, para compreendermos o que significa a noção de “empatia” no contexto da psicologia, se faz necessário darmos um passo para trás e compreendermos antes a noção de “intervenção”. da qual ela advém. Segundo Luiz, de antemão podemos observar um distanciamento da noção de “intervenção” em ambos os contextos. Isso se deve ao fato de que a psicoterapia surgiu no contexto ocidental por um viés quase no sentido contrário do lugar da intervenção pautada no fundamento religioso, uma vez que suas bases advém do movimento do conhecimento científico.
Em termos práticos, pode-se dizer que o conhecimento científico é produzido a partir de uma evidência lógico-epistêmica. Isso significa que o conhecimento se dá a partir da comunhão de vários cientistas estudiosos de uma temática, que a partir de um dado método “neutro” materializam um conhecimento e quantificam seus objetos de estudo, sendo que tal materialização é transmitida na forma de textos (livros e artigos científicos, por exemplo), por ensino formalizado (pela universidade, por exemplo) ou pela prática supervisionada (prática profissional supervisionada por um profissional mais experiente). Mais à frente, iremos discutir com mais profundidade esta diferença primordial entre o contexto de produção do conhecimento dentro do contexto religioso e o do contexto científico.
Dentro deste processo de produzir, verificar, interpretar, analisar, reproduzir, materializar e supervisionar o conhecimento por meio de fundamentos lógico-epistêmicos, duas ferramentas importantes de trabalho do psicoterapeuta passaram a ser o que Luiz chama de “escuta empática” e “sugestão”. Apesar de serem termos que podem ser encontrados em outras áreas de atuação, e até mesmo nas “Terapias da Alma” no contexto religioso, ambos os termos no contexto da psicologia estão fundamentados de modo a incluir elementos racionais, analíticos e podendo se valer inclusive de instrumentos outros como testes e avaliações psicológicos em seu processo.
Falando especificamente da “escuta empática”, compreende-se que ela é regulamentada por um fazer próprio da psicologia enquanto ciência. O ponto principal da empatia “Fundamenta-se não no reconhecimento intuitivo das semelhanças, mas na percepção analítica das diferenças, pressupondo, portanto, a alteridade, sem que se perca a comunhão estabelecida com o outro. O ponto fulcral da empatia é a capacidade de manutenção da individualidade do terapeuta, ou seja, a capacidade do terapeuta manter-se ciente das diferenças entre ele e seu paciente”. Essa definição nos leva a perceber uma das diferenças fundamentais das terapias religiosas e psicológicas - enquanto esta concebe a empatia como um processo em que as diferenças entre quem escuta e quem fala são preservadas, aquela acentua muito mais a semelhança para que quem escuta possa exercer influência no comportamento e no processo daquele que fala.
Já o conceito de “sugestão”, que possui um papel importante dentro de ambas terapias, é descrito por Luiz como um recurso metodológico básico que é parte da psicoterapia como um todo. Ele está pautado na ativação dos processos idiossincráticos (característicos de cada indivíduo) inerentes à pessoa atendida, que geralmente são descritos por construções de abordagens teóricas, mas que se pautam fundamentalmente no direito à liberdade e capacidade de escolha de cada indivíduo, bem como nos Direitos Humanos.
A partir desta fundamentação temos um marco na possibilidade de prática do psicólogo que constitui uma das mais importantes diferenciações entre a intervenção psicoterapêutica e a religiosa. Devido a este “pautar-se” no direito à liberdade de escolha de cada indivíduo e nas premissas do Direitos Humanos, fica vedada à prática da psicologia a imposição de processos de cura baseados em uma vertente ideológica específica que busque uma mudança no indivíduo de acordo com esses fundamentos pré determinados ao invés de uma ativação da sua capacidade de escolha em seu processo. Tal característica é ponto de partida da possibilidade da psicoterapia e também regulariza o fazer da profissão uma vez que está, inclusive, descrita em nosso Código de Ética como dever de cada psicólogo independentemente do contexto em que atua.
As diferenças evidenciadas por Luiz a respeito das noções de “empatia”, “sugestão” e “intervenção” nos oferecem uma clareza maior na distinção entre ambos os processos terapêuticos e na percepção de que, inclusive, estes contextos de atuação possuem uma noção acerca do que seja o homem muito distintas. Partindo desse chão das diferenças, agora podemos buscar compreender como é possível, então, que a psicologia dialogue sobre a espiritualidade aproximando-se do lugar do ser biopsicossocial espiritual que mencionamos no texto anterior.
Como é possível um diálogo entre crenças religiosas e a psicologia, respeitando as diferenças entre essas duas formas de produção de conhecimento? Para traçarmos um caminho em direção a este diálogo, vamos aprofundar o que Luiz já nos mostrou compreendendo agora o conceito de laicidade em sua origem e como este conceito está ligado à ciência e a religião atualmente. Para tanto, lançaremos mão dos estudos realizados pelos profissionais do CRP-MG (Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais) têm realizado sobre o assunto.
Segundo esses profissionais, o significado atual do termo “laico” difere do significado originário da Idade Média. Nesta época, o laico nada mais era que o leigo - alguém que não estava apto a conhecer a verdade por não ser o “eleito” a acessá-la. Apenas as autoridades religiosas poderiam acessar essa verdade transcendental e metafísica por serem os escolhidos a compreenderem-na e transmiti-la aos então chamados: laicos. Neste contexto, a produção de conhecimento estava ligada a uma determinada forma advinda de um dado modo de acesso à verdade - o acesso à verdade realizado por determinados indivíduos que haviam sido escolhidos por uma força sagrada para ter uma experiência diferenciada quanto a espiritualidade e assim conhecer a verdade e produzir conhecimento humano a partir dela.
Com a vinda da Era Moderna o poder político passa a se distanciar do poder religioso a partir do surgimento e ascensão da classe social burguesa. Os denominados “laicos” até então passam a produzir conhecimento a partir do paradigma científico, transformando enormemente a relação do homem com o mundo até os dias atuais. O conhecimento agora atrelado ao paradigma do pragmatismo positivista e da lógica mercadológica passa a ser realizado por via de uma experiência técnica de conhecimento da realidade, utilizando tal conhecimento para investigação da verdade. Uma verdade agora produzida pelos próprios laicos que, também “munidos” do método cartesiano da dúvida, questionam os paradigmas dogmáticos nos quais o conhecimento da época anterior era produzido, questionamento tal não em seu caráter de verdade, mas na sua unicidade de possibilidade de produção de conhecimento.
Dentro deste processo histórico temos o movimento iluminista que, por exemplo, inaugura essa nova racionalidade como uma nova possibilidade de produção de conhecimento e acesso à verdade, tendo ainda a própria corrente religiosa do protestantismo encontrado ressonância nesta fonte tardiamente. Na Era Moderna, portanto, surge a possibilidade do conhecimento laico sobre a verdade. Conhecimento este que produziu solo frutífero para o que hoje chamamos de ciência.
É comum termos uma concepção de que laicidade encontra uma correspondência com um certo grau de ateísmo. Isso, no entanto, vem de uma indistinção entre os processos de “laicidade” e “laicismo”. Segundo Cesar Ranquetat, outro pesquisador da temática, é preciso diferenciar laicidade de laicismo. O laicismo corresponde a uma forma violenta e combativa de laicidade que procura extirpar a religião da vida social. Revelando-se concretamente como uma ideologia anti-clerical e anti-religiosa. Outra diferenciação importante, apontada por Cesar, é a do termo “secularização”, o qual diz respeito ao processo pelo qual os preceitos religiosos passam a não mais serem os preceitos nos quais se baseiam a formação e organização da sociedade moderna. Foi o processo de separação entre a religião e o estado. Tal separação também teve por consequência a possibilidade de uma visada ao pluralismo religioso que se mostra na sociedade. No entanto, tal pluralismo não ocorre apenas por essa via. A história nos mostra sociedades que concebiam o pluralismo religioso e que não eram secularizadas.
Na atualidade a compreensão de laicidade, portanto pode ser compreendida como aquela que implica em uma certa neutralidade do Estado em matéria religiosa. Enquanto a vertente mais radical denominada “laicismo” preza pela exclusão da religião do Estado e da esfera pública, a laicidade em seu sentido mais amplo diz respeito “à imparcialidade do Estado com respeito às religiões, o que resulta na necessidade do Estado em tratar com igualdade as religiões. (...) A laicidade não se confunde com a liberdade religiosa, o pluralismo e a tolerância. Estas são conseqüências, resultados da laicidade. Pode haver liberdade religiosa, pluralismo e tolerância sem que haja laicidade, como é o caso da Grã-Bretanha e dos países escandinavos. No Brasil, a constituição imperial de 1824 já garantia o direito à liberdade religiosa a outras religiões além do catolicismo. Apesar da união entre Estado e Igreja Católica, sendo esta a religião oficial do império, já existia neste período um determinado grau de liberdade religiosa” (CRPMG).
Para o que o CRPMG nos atenta é o fato de que a ciência hoje produzida a partir desse lugar do laico compreende-se, portanto, não em uma ciência em oposição e que nega o conhecimento produzido via religião, tampouco é necessariamente uma ciência atéia, em sua origem ela, a ciência enquanto laica, quer dizer muito mais uma ciência que concebe o conhecimento de uma dada religião como uma possibilidade de conhecimento, reservando a si a observação da possibilidade do conhecimento do homem do “sagrado” outras formas igualmente válidas. Em outras palavras: “O Estado laico moderno, portanto, não se pretende um Estado ateu e sim um Estado plural, que permite que a diversidade religiosa se apresente sem reservas e o pensamento laico, por sua vez, não é um pensamento que desconsidera a dimensão de espiritualidade, mas o observa enquanto experiência ontológica” (CRPMG).
Agora, uma vez que consideremos a faceta humana de relação com o transcendental, com o “sagrado”, a saber: a espiritualidade, o que a Psicologia, enquanto ciência laica, enquanto ciência que possui uma certa imparcialidade com relação à religião, teria a ver com esta questão? Segundo Roseli Fischmann, “o universo da pesquisa científica tem dinâmica própria, voltada para a análise objetiva, a reflexão crítica e, de forma especial, a constante atitude de dirigir um olhar permanentemente indagador ao mundo e à vida”. Como então seria possível tal diálogo? Este caminho é o caminho que iremos percorrer ao longo do nosso ciclo “Espiritualidade e Psicologia”.
Segundo os profissionais do CRPMG, para compreendermos como é possível uma ciência laica observar o fenômeno da relação com o “sagrado” enquanto um fenômeno característico e próprio do ser humano, se faz necessário compreender que tal experiência, ainda que possa ser intrínseca ao ser humano, possui sua manifestação sempre a partir de um determinado horizonte cultural e histórico que a localiza e a circunda. Em outras palavras, as religiões podem ser compreendidas dentro deste contexto cultural e histórico de modo que dadas as diferentes características epocais também nelas se entrelaçam as diferentes crenças religiosas, bem como as diferentes compreensões que as religiões podem ter do modo como o humano se relaciona com “o transcendental”.
Seria então o fenômeno religioso um determinado modo de vivência da espiritualidade? Como é possível ainda, compreendermos que uma dada religião é apenas um modo de manifestação desta faceta humana de relação com o transcendente? Poderíamos, então, compreender a necessidade do surgimento de diferentes religiões e crenças religiosas dada as diversidade culturais e históricas bem como as nuances subjetivas de experiência da espiritualidade? Mais do que nos apressarmos em responder tais perguntas, vamos nos permitir nos demorarmos um pouco mais no que elas buscam conhecer.
Até o próximo capítulo!