QUEREMOS SABER

O outro e o
estrangeiro
em mim
Por: Franciane Nolasco
(Contém spoilers do filme “A história de um casamento”)
“Someone to hold me too close
Someone to hurt me too deep
Someone to sit in my chair
And ruin my sleep,
And make me aware
Of being alive
Somebody need me too much
Somebody know me too well
Somebody pull me up short
And put me through hell
And give me support
For being alive
Make me alive”
(Música cantada pelo personagem Charlie em “A história de um casamento”)*
Uma das cenas mais contraditórias, dramáticas, belas e simbólicas do filme. Após ser chamado de “egoísta demais para ser artista” ele derrama o pequeno frasco de perfume francês sobre o microfone e sobre sua plateia. “Alguém que te conheça demais, que precise demais de você, que entre o céu e o inferno te faz sentir a vida”. Não entrarei aqui na discussão sobre o mérito de se alcançar a felicidade sozinho. É que o vazio que se instala após uma ruptura tão dramática pode suspender os horizontes por um tempo, não é mesmo?
Nesse “vácuo temporal” muito há para ser curado, por vezes. As dores, mágoas, revoltas, desencontros e os “e se”. Ainda a ausência e a solidão. O ter de se deparar com a primordial condição da existência de que ser é sempre ser-com, ser junto a outro, e que aquela forma com aquela pessoa não mais existirá. Que agora, após uma separação, só se pode relacionar com ela não mais que em seu ser ausente para mim.
É inevitável que a atenção antes no junto agora se encontre apenas em mim, em meu ser sozinho e na lida com esse novo lugar que vim parar após o giro da roda da fortuna. Estamos preparados para isso? Eu diria que não. Pois a vida não o permite, não há duas separações iguais. Desde o nascimento, o homem está lançado a pergunta “quem sou eu?”, no entanto, sabemos que a resposta é incerta, sorrateira e pode escorregar de nós a cada esquina dada a natureza inacabada no nosso ser. Esse é o nosso ser-si-mesmo, o nosso ter de desvelar-se que nos acompanha mesmo dentro das diversas relações que temos.
Claudine Costa, estudou a temática do relacionamento e nos descreveu diferentes formas desse “equilíbrio” entre o ser-si-mesmo e o ser-com dentro de uma relação conjugal. Foi de chamar a atenção que na mesma época que estudava o texto de Claudine conheci esse belíssimo filme chamado “A história de um casamento”. Nele pude acompanhar uma personagem que vive à flor da pele a tensão entre estas duas dimensões de seu ser que uma vez dadas as condições de seu relacionamento, começaram a entrar em conflito. O roteiro fora escrito de tal forma que quase pude adentrar em seu drama eu mesma.
A personagem Nicole vive um intenso conflito entre seu ser-si-mesmo e seu ser-com conjugal. A ponto de a ruptura da relação ser inevitável. No encontro do passado com o presente, quase que numa sintonia anacrônica, nós observamos a experiência de Nicole dos bastidores: ela conta sua vivência desse casamento e de seus conflitos enquanto é acolhida pela advogada de defesa de seu processo de divórcio colocando-lhe à par dos pesares da ruptura e abrindo seu íntimo ao público pela primeira vez. As tensões entre as facetas de seu ser-si-mesmo e seu ser-com eram grandes e no abalo entre as estruturas a personagem conta como a situação junto ao ex marido tornou-se insuportável. Nicole havia escolhido seu ser-si-mesmo.
Ali, na narração de sua história, é possível percebermos a dupla face da relação que abarca o jogo do mostrar-se/revelar-se que há entre o eu e o outro. Ora expõe a cara, ora a coroa da moeda desvelando o próprio tear da relação como um tecer que se faz junto. Nicole narra a sua advogada a história de que no início da relação colocava-se no lugar de oferecer suporte aos sonhos de Charlie, seu ex marido. Acreditava que ele realmente era um excelente diretor de teatro e que dirigia muito bem a CIA em que trabalhavam juntos, ele dirigindo e ela atuando. Nutria também um forte desejo de ser diretora e esperava pacientemente o dia em que seu marido permitiria que ela o fosse, lhe oferecendo a oportunidade de dirigir ou de aprender a fazê-lo dentro da CIA. Promessa que ele sempre mantinha, mesmo tardando em cumpri-la, tornando a espera infinita e a relação profissional de ambos incontornável.
Nicole teceu para si algumas explicações quanto a isso. Acreditava que para Charlie era difícil manter-se fora do controle da direção, permitindo e cedendo à outra pessoa. Conforme o tempo passava um sentimento de não ser vista na relação foi crescendo em seu íntimo e ficou-lhe cada vez mais nítida e focada a desatenção que ele tinha para com ela em várias oportunidades agora dentro do ambiente do casamento. É claro que ele também tinha sua vivência dos fatos, que inclusive nos é apresentada no filme. É claro que também havia indícios de comportamentos abusivos da parte dele. No entanto, hoje ficaremos apenas com o relato de Nicole, não para afirmá-lo como a única verdade, mas para ganharmos nele profundidade e ver se assim tateamos alguma profundidade em nós mesmos.
Chamo a sua atenção agora para esse revelar-se do ser-si-mesmo que oras perpassa por uma segurança de poder-ser ao lado de Charlie e oras sente essa possibilidade de ser-si-mesma sendo justamente negada por ele. Quão grande pode ser a dor que outrem pode nos provocar, consciente ou inconscientemente, ao negar-nos uma possibilidade a nós tão própria? É permanecendo junto a essa dor, deixando ela nos falar a respeito de nosso ser que podemos nos aproximar desse algo em nós que está tentando romper as camadas expressivas e ser por nós manifesto.
Ao mesmo tempo que o outro lhe negava sua possibilidade mais íntima ela descobria seus próprios interesses e necessidades e não podendo realizá-los “em relação” optou por sair dela, separar-se e seguir por conta, sem o apoio dele pelo qual tanto esperara. Mas não poderia ela ter feito isso ainda dentro da relação uma vez que já sabia o que desejava? Na vivência as coisas não são tão lógicas e com causas específicas e uma vez que para ela a resposta era não, para nós também deve ser. O caso é que muitas relações podem sim favorecer essas descobertas, mas sempre se faz necessário um movimento de ambos integrarem essas novas possibilidades de ser do ser-si-mesmo de cada um em harmonia com o ser-junto. Uma harmonia que vem de concessões mútuas por vezes, mas com certeza do diálogo, do respeito e da flexibilidade e comprometimento de cada um para com o próprio movimento da relação e para com o outro.
Mesmo assim, isso seria o mesmo que dizer que o outro tem alguma responsabilidade pela realização dos anseios mais íntimos do meu ser? Isso pode ser (e em muitos casos é) uma espera demasiado longa e sem garantias de vir a ser. É por isso que em psicologia vamos sempre prestar atenção na capacidade de cada um em realizar-se. Chamamos a isso, por vezes, de “ganhar-se a si mesmo”. Quem está pronto para esta tarefa nada fácil de ganhar-se a si mesmo? Enfrentar-se a si mesmo? E ainda mais, conciliá-la com uma relação? Na vida, creio que não há como escaparmos dessa lida, nem há como estar preparado de fato para ela, o imprevisível e o desconhecido fazem parte dessa equação. No entanto, a lida consigo mesmo diz respeito a nossa individualidade, que deve estar presente no encontro com o outro inclusive para que seja possível a compreensão desse outro como diferente de mim embora muitas semelhanças possam ser reconhecidas. Aqui precisamos fazer uma distinção mais clara entre individualismo e individualidade para compreendermos as diferentes formas como podemos perceber o outro na relação e como essa percepção está relacionada ao modo como vemos a nós mesmos.
Como Claudine nos ensina, existe uma marca muito diferente entre a noção de individualismo e individualidade. Por individualismo compreende-se um complexo jogo cultural entre a sociedade capitalista e a noção de indivíduo que acompanha esse discurso. Um indivíduo que pode cada vez mais estar associado a globalização cultural, ao culto do eu individual que para tanto nega o outro através da afirmação de auto suficiência (provedor de si) e exaltação de si. Em “Amor líquido” o sociólogo Bauman explicita, dentre outras questões, como a nossa sociedade atual e seu discurso individualista e globalizado afeta o modo como nos relacionamos com os outros e com nós mesmos. Deixando nossos relacionamentos mais superficiais e transitórios e nossa necessidade de conexões profundas sedenta e atrofiada. É um projeto de indivíduo que todos nós conhecemos (uns mais outros menos) dada nossa inserção no sistema capitalista. Por outro lado, por individualidade compreendemos um fluxo de compreensão de si que revela nosso processo de autonomia e independência em que há necessariamente a presença desse outro que não é uma extensão de mim, que carrega em si uma estrangeiridade que não pode ser acessível de antemão pelo meu conhecimento prévio. Desse modo, na individualidade reconhecemos as diferenças e pluralidade como fatores de crescimento e riqueza social e dos pares. As diferenças não são mais experienciadas como fator de risco às relações.
A nível relacional, nessa noção de individualidade compreende-se que ser autônomo e independente é ter condições de se relacionar com outras pessoas de modo igualitário, em que as potencialidades individuais são reconhecidas na relação e a comunicação aberta e livre entre os membros é condição necessária para o desenvolvimento da intimidade e qualidade da interação. Essa intimidade é a abertura ao outro, uma disponibilidade para a troca e para a visada dos limites de cada um, sendo que aqui o estranhamento é permitido na relação. Eu me relaciono com o outro mesmo ele sendo em partes estranho a mim, pois o considero e o compreendo a cada vez em seu todo enquanto individualidade e, portanto, como um ser inacabado, ainda em processo de ser.
Nesses termos, Claudine explica que para que tal igualdade seja alcançada é imprescindível, além desse respeito mútuo, que a comunicação emocional de cada um consigo mesmo esteja sendo desenvolvida para que seja possível essa comunicação emocional com o outro. Apenas quando posso me relacionar e compreender o meu próprio processo abarcando a minha própria estrangeiridade a mim mesmo é que posso compreender esse outro em seu todo como um sujeito de possibilidades. Aqui a autonomia “é reconhecer suas capacidades e limitações; é estar consciente de suas características individuais que o fazem diferentes dos demais, configurando a ideia de ser único e exclusivo no universo; é respeitar os outros e acreditar que é, na relação com o outro, que ele pode amadurecer e crescer como pessoa” (Claudine, em “Três modos da experiência de “ser-com” e “ser-si-mesmo” em situação conjugal: um estudo exploratório).
Assim chegamos a compreensão desse movimento especial e interdependente do ser-si-mesmo e do ser-com-o-outro que ocorre na relação em pares, sendo uma delas o casamento. Claudine pesquisou os discursos de três casais analisando os jogos entre a relação que cada um tinha consigo e com o outro, essas tensões e harmonias se mostravam tão singulares e particulares conforme a unicidade de cada relação.
No primeiro deles, o casal discordava de como a harmonia entre o ser-si-mesmo e o ser-com deveria ser. Para o marido, seu ser-si-mesmo se manifestava na relação de forma satisfatória e íntegra e o casal deveria abrir mão da vida particular que cada um tinha anteriormente. No entanto, para a esposa a falta de sua vida particular era algo que lhe dava a sensação de deslocamento de si e estava interferindo diretamente em seu bem estar na relação. A participação na pesquisa e a explicitação dessa disparidade inclusive trouxe-lhes clareza para os motivos de tantas discordâncias que vinham sofrendo dentro da relação.
No segundo caso, ambas as parceiras tinham comuns necessidades de manter o ser-com em primeiro plano sentindo que seu ser-si-mesmo se manifestava de forma livre e satisfatória na relação. O problema maior do casal era o limite externo imposto pelo preconceito da família para com a relação homoafetiva delas. Preconceito este que limitava de forma considerável a expressão da relação como um todo e por consequência, da expressão do ser-si-mesmo de cada uma. No entanto, ambas conseguiam encontram união interna para superar essa dificuldade.
O terceiro casal que Claudine entrevistou descrevia-se em perfeita harmonia com relação a questão, visto que o ser-si-mesmo de ambos encontravam-se identificados com os mesmos preceitos religiosos. Ambos nutriam e seguiam-se fiéis, compartilhando de forma muito próxima o significado e sentido do casamento dado a priori por uma determinada religião em que se encontravam. Encontrando o equilíbrio da relação, nesse caso, em algo externo a ela.
Como podemos perceber, essa situação em que os pares se encontram em busca desse equilíbrio interno à relação, não é uma simples tensão experimentada, mas um jogo que em muitos casos pode vir a corroborar para o desentendimento do casal e a separação. Esse ápice em que se chega à separação pode ser compreendido como uma série de distanciamentos e indiferenças com relação a necessidade de lida com esse complexo processo, como vimos. Em muitos casos as diferenças e necessidades individuais podem ser tamponadas pelo medo da ruptura, nesse caso havendo a desconsideração e enfraquecimento da individualidade de ambos e de como as diferenças podem trazer riqueza à relação. Relembrando o que Claudine disse ali pelas tantas: “(...) o estranho muito próximo reflete o estranho em mim, tornando-se impossível conviver e restando, apenas, a alternativa de aparar as estranhezas, para continuar do lado do outro”. Logo, as diferenças ficam sendo sinônimos de ameaças ao invés de riqueza e pluralidade. Por um lado, ao focar demais na individualidade corre-se o risco de negar nossa condição existencial fundamental de ser-com. Por outro, reconhecer-se é preciso e lidar com seu próprio ser pode prescindir a manutenção de um espaço e tempo apenas seu, com alguma distância dessa relação. Sendo assim, ambos os lados são importantes e necessários de serem desenvolvidos, dada a sua interdependência.
Não apenas no caso fictício de “A história de um casamento” como também em muitos outros da vida fora das telas ocorreu o divórcio, a separação, o afastamento e ainda as brigas entre os corações ainda sangrentos, apaixonados e doloridos tanto antes do término quanto após o término. Isso acompanhado de um processo jurídico frio misturado com o calor do recém desfeito “ninho” que ainda habita em cada um. Dentre tantos questionamentos, fica uma última pergunta: Como encontrar um diálogo quando o outro se encontra tão distante e eu me sinto tão incompreendido? Para cada relação a harmonia e os desafios se darão de forma única, como pudemos observar pelos estudos de Claudine e pela história de Nicole e Charlie. Da mesma forma, única e específica será a busca de meios para encontrar o equilíbrio das dimensões de ambos os seres que estão em coexistência. Busca essa que pode partir de um ou de outro, ou ainda de ambos em conjunto. No entanto, sabemos que qualquer caminho que seja escolhido irá perpassar o acolhimento e conscientização de suas necessidades, para então, a visada desse outro e de sua individualidade com a qual me relaciono. Faz-se necessária a acolhida do estrangeiro em mim para, então, o acolhimento desse outro, estrangeiro a mim.
