QUEREMOS SABER

"Mercury 13 -
O Espaço Delas"
e "O segundo
sexo" de beauvoir
(contém spoilers)
Por: Franciane Nolasco
“Mercury 13 - O Espaço Delas” foi um documentário realizado em 2018 que relata os preconceitos de gênero que as mulheres sofreram nos bastidores da NASA nos primórdios da construção e preparação para o primeiro lançamento de uma nave espacial com um ser humano. O documentário leva o nome do projeto que foi desenvolvido paralelamente para que mulheres que se destacavam no campo da pilotagem, e que tinham tanta capacidade de receberem treinamento e obter sucesso na formação como astronautas quanto os homens reconhecidos na época, tivessem uma oportunidade de vir a público.
O documentário explicita o fato de que na época os homens não precisavam de qualquer luta para terem seus direitos ao treinamento garantidos, enquanto as mulheres precisaram realizar este projeto paralelamente para que pudessem enviar a NASA os resultados de desempenho que obtiveram nos testes para astronautas (mesmos teste aplicados pela NASA para os futuros astronautas). Mesmo diante de seus excelentes desempenhos, inclusive muitos superiores aos resultados dos futuros astronautas homens em determinados quesitos, a NASA rechaçou qualquer possibilidade de contactar essas mulheres e colocá-las na equipe. Além da não abertura de espaço a essas mulheres para que elas habitassem esse novo lugar que o ser humano conquistava, o projeto virou motivo de chacota pública com direito a piadas de conteúdos machistas e misóginos.
Tardiamente, mesmo sem ter realizado o sonho de serem astronautas, essas mulheres foram reconhecidas e homenageadas por Sally Ride, em 1983, a primeira mulher a ir ao espaço pela equipe da NASA. Sally Ride reconhece que sem sombra de dúvida, o passo empreendido por essas mulheres do projeto Mercury 13 levou consigo todas as mulheres um passo adiante. Vale lembrar que Sally Ride não foi a primeira mulher a ir ao espaço. Foi Valentina Tereshkova, que ainda em 1963, viajava pela primeira vez em uma cápsula espacial soviética.
O documentário nos fornece um destaque de extrema importância para que entendamos sobre o que se trata a desigualdade de oportunidades que existem para homens e mulheres. Assim como Sally Ride reconheceu, nós também podemos compreender o tamanho do passo realizado pelas mulheres do projeto Mercury 13. Este grupo de astronautas nada mais eram que mulheres dizendo a sociedade sobre si mesmas, sobre quem eram, quem gostariam de ser e provando sua capacidade. Ainda assim é possível levantarmos a questão de que o contexto desse “provar-se competente”, embora também houvesse testes de admissão para os homens, ainda se apresentou muito mais dificultoso às mulheres tanto naquela época, quanto atualmente.
Ainda hoje, as mulheres parecem ter de provar-se com força muito mais árdua do que os homens. E isso não se dá a uma incapacidade inata da mulher, inferioridade física ou intelectual, como bem provaram as mulheres do Mercury 13 e tantas outras até então. Isso se dá devido ao fato de que as mulheres já sempre foram vistas pela humanidade como habitando um degrau abaixo do homem. Aos que sempre foram privilegiados e tiveram seus direitos de disputa por esses espaços garantidos, com frequência é dificultoso o processo de olhar para o lado desse “Outro” que clama pelo seu direito de habitar esse mesmo lugar.
Para jogarmos luz sobre essa dificuldade de visão, precisamos compreender as diferenças da concepção acerca do Ser do homem e do Ser da mulher na sociedade. Para tanto lançaremos mão das reflexões de Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo. Simone de Beauvoir foi uma escritora, filósofa existencialista, ativista política, feminista e teórica social francesa do século XX. Seus escritos são de extrema importância para compreensão, reflexão e colocação da questão do papel da mulher na sociedade, de como a mulher foi e é compreendida ao longo da história em seu ser e, como é possível e necessário que indaguemos, nós mesmas, mulheres, pela questão do Ser mulher.
Beauvoir inicia sua obra, buscando compreender a definição sobre o Ser mulher, uma vez que todas as definições vigentes carecem de uma unidade que represente as mulheres como um todo. Ainda pensando nessa definição, a escritora lança-se sobre a tarefa de compreender como historicamente a mulher vem sendo definida. Ela cita inúmeros excertos de livros de pensadores excepcionais, grandes clássicos da humanidade, falando acerca da mulher. Ao fim da reflexão, fica claro que a mulher sempre foi vista como nada mais nada menos do que uma subalterna ao homem, que seu papel na sociedade era definido pelo homem (branco) e que era o de lhe servir. "A mulher determina-se e diferencia-se em relação ao homem e não este em relação a ela; a fêmea é o inessencial perante o essencial. O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro" (Simone de Beauvoir - O segundo sexo, vol I Fatos e Mitos).
Beauvoir coloca a questão da seguinte forma: desde a primitividade os povos compreendem-se como "Nós" e "Eles". Desde que a humanidade começou a agrupar-se nasceu a diferenciação entre o “Nós” - estes que fazem parte do meu grupo - e o “Eles” - aqueles que fazem parte de um outro grupo. Em outras palavras: como nós - estes que me rodeiam e que reconheço e sou reconhecido como comum. Como eles: estes outros que me são estranhos. Ao passo que, em determinado momento, um lado dessa moeda começou a perceber que também poderia ser ela mesma estranha ao outro, ser para o outro um "Eles" tal como este o é.. Logo, a relatividade começa a ser tomada como possível dentro dos contextos de singularizações desde que a humanidade começou a se perceber pertencente a um dado grupo em detrimento de outro..
Apesar dessa relatividade existir para os grupos, esse reconhecimento de que meu grupo pode ser um “Outro” para esses que são “Outros” para mim ou para “Nós”, com relação ao lugar da mulher na sociedade, no entanto, parece haver uma dificuldade em aplicação de relatividade. Beauvoir, sobre isso, questiona:
"Como se entende, então, que entre os sexos essa reciprocidade não tenha sido colocada, que um dos termos se tenha imposto como o único essencial, negando toda relatividade em relação a seu correlativo, definindo este como a alteridade pura? Por que as mulheres não contestam a soberania do macho? Nenhum sujeito se coloca imediata e espontaneamente como inessencial; não é o Outro que definindo-se como Outro define o Um; êle é posto como Outro pelo Um definindo-se como Um. Mas para que o Outro não se transforme no Um é preciso que se sujeite a esse ponto de vista alheio. De onde vem essa submissão na mulher? " (Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo).
O que Beauvoir está perguntando é, uma vez que observa-se a descrição do Ser mulher dentro da produção cultural da humanidade como subalterna ao homem, quem realizou esta definição e com que autoridade? Quem colocou-se no lugar de centro da identidade da humanidade (o Um absoluto) para então compreender o Ser mulher como um Ser que, em comparação a esse Um absoluto, possui algo de menos e seria portanto inferior e dependente? E ainda, o que leva a mulher a calar-se diante dessa colocação?
A dependência do Ser mulher em relação ao Ser homem advém do não reconhecimento da alteridade em detrimento a um certo absoluto (construído). Por não conseguir entender-se como “Outro” para esse que é “Outro” para mim, por não conseguir perceber-se como relativo, o homem em sua figura de representante do que é o Ser do Ser humano não reconheceu ao longo da história a alteridade do Ser mulher em sua existência singular. Às mulheres que sempre foram, senão escravas ou ao menos vassalas; sempre houveram degraus a mais a serem conquistados para se chegar em pé de igualdade em termos de reconhecimento e oportunidade de desenvolver livremente os diversos papéis na sociedade. Por isso, ainda hoje fala-se na necessidade de dar espaço às mulheres, pois essa luta apesar de antiga está longe de seu fim.
Vale lembrar que não se trata de inversão dos papéis, esta luta não se refere a trocar de lugar com os homens na disputa “Senhor-vassalo” porque ainda sim estaríamos nos referindo a uma lógica estabelecida pelo patriarcado, ao “Um absoluto” versus esse “Outro” o qual eu não reconheço como “Um”. Trata-se sim, de reconhecer essa disparidade desde o início dos tempos até o momento atual. Disparidade em que a mulher tem sido lançada ao imaginário social como inferior ao homem. Disparidade que vela a verdade de que este imaginário é um papel social que foi escrito ao longo da história por aqueles que tinham poder de escrever a história e que hoje é preciso entregar às mulheres o papel e a caneta para que elas mesmas escrevam e realizem sua história. Caso contrário, continuaremos perpetuando a mesma fábula dos velhos tempos, aquela do ponto de vista daqueles que sempre detiveram o poder e que se descrevem como grupo representante da humanidade.
Visto isso, se encontro-me num papel privilegiado no modo como essa história está sendo contada, por que não dar espaço à luta por essa causa de igualdade de direitos: deixando a mulher por ela mesma tomar o lugar de dizer qual é o seu Ser mulher e o que ela gostaria de ser? Assim como de muitas mulheres pioneiras que conquistaram e conquistam ainda hoje os espaços dominados pela lógica e pelo privilégio do homem em detrimento da mulher, o projeto Mercury 13 levou a todas nós um passo adiante. Um grande viva a todas as mulheres que fizeram e fazem parte dessa luta por direitos, reconhecimento e justiça.
